PORGY AND BESS E O ELENCO ALTERNATIVO NO MUNICIPAL DE SÃO PAULO. Crítica de Marco Antônio Seta

O que acontece quando se tenta fazer ópera com alma de musical?
                 
           Cena de "Porgy and Bess" levada para as comunidades paulistas 

A recente produção de Porgy and Bess no Theatro Municipal de São Paulo revelou problemas graves de concepção musical e cênica, comprometendo o resultado artístico esperado para uma obra que, apesar de suas raízes no jazz e no espiritual afro-americano, foi concebida integralmente como ópera.

Primeiro, a opção pelas vozes microfonadas comprometeu de imediato a essência da ópera, que vive justamente da projeção vocal natural, sem intermediários tecnológicos. Esse recurso aproximou a execução muito mais de um musical da Broadway do que de uma ópera, distorcendo a própria natureza da partitura de Gershwin, que, embora dialogue com o jazz e a música popular, foi concebida integralmente como ópera. Ao colocar todos os cantores sob o mesmo “filtro sonoro”, anulou-se a hierarquia dramática e musical das vozes um contrassenso para o gênero.

Outro aspecto: a Orquestra Sinfônica Municipal, sob a batuta de Roberto Minczuk, apresentou problemas evidentes de articulação rítmica, dura sonoridade e de equilíbrio tímbrico. Gershwin exige precisão nos acentos sincopados, fluidez nos diálogos entre madeiras e metais e um balanço orquestral que oscila entre a tradição sinfônica europeia e a leveza do swing americano. Ao invés disso, o que se ouviu foram ataques descoordenados, falta de clareza nas cordas e metais excessivamente duros, percussão frouxa descaracterizando o colorido original. Assinalem-se aqui os cortes da percussão ao abrir o episódio do piquenique na ilha de Kittiwah, onde a congregação religiosa da localidade organiza um encontro festivo. 

O coro denominado “Gershwin” tampouco correspondeu à exigência dramática da obra. A homogeneização das vozes e a falta de dinâmica interpretativa fizeram com que cenas corais que deveriam ser momentos de impacto coletivo e emocional soassem artificiais e sem vigor expressivo.

Quanto à direção de Grace Passô, o discurso da pluralidade e diversidade foi colocado como eixo central, mas acabou se transformando em redundância estética e conceitual. O teatro lírico, pela sua própria natureza, já é espaço de multiplicidade de línguas, culturas, estilos musicais e tradições cênicas. Reiterar esse ponto de forma panfletária soou como substituto para a ausência de uma visão realmente operística da obra.

Em suma, o espetáculo não apenas falhou em traduzir a riqueza híbrida de Porgy and Bess para o público paulistano, mas também reforçou a sensação de que a gestão atual do Theatro Municipal busca legitimar escolhas frágeis artisticamente com discursos sociais prontos, sem o devido rigor técnico e estético que o repertório exige. 

A presença de Zuzu Belmonte como Serena no elenco alternativo foi o ponto alto da récita de 26 de setembro às 20:00 horas com a sua emocionada canção "My man's gone now" em meio a lamentação, num cadenciar funéreo e denso, cuja voz sobrepujou intensamente no registro de mezzo soprano. O público retribuiu-lhe com a maior ovação da noite. Por outro viez o tenor Carlos Eduardo Santos realizou um Sportin'Life de boas inserções; como Mikael Coutinho num talentoso e versátil Crab Man. David Marcondes, o barítono dramático interviu num Crown de regular postura cênica e musicalidade com voz um pouco velada na tessitura desse personagem malígno e brutal. A Clara de Núbia Eunice deixou a desejar numa voz pequena demais para uma canção de popularíssima e tão esperada execução à uma plateia lotada, ainda que sua postura cênica se salvasse como a jovem mulher de Jake. Este por sua vez interpretado por Michel de Souza, com uma faringite pré-anunciada ao início do espetáculo, não satisfez, uma vez desafinado, rouco e inatingidas certas notas a ele destinadas. Edna D'Oliveira (ela não é um contralto) nas vestes do contralto Maria, nada pode satisfazer nessa tessitura, se limitando a declamar a sua parte. Mere Oliveira (mezzo soprano) compôs uma Anne bastante convincente. 

Nos protagonistas ouviram-se a voz aveludada e bem timbrada do baixo cantante Luiz-Ottavio Faria com uma dicção pouco clara, mas bem defendida na parte musical com a voz de Marly Montoni, a qual  bastante desgastada pela imensidão de personagens abordados em sua jornada ( já enfrentou a Abigaille de Nabucco, a Aida e a Madama Butterfly;  bem como a Santuzza da célebre "Cavalleria Rusticana" e a Turandot,  de Busoni,  Fidelio de Beethoven,  e as personagens de Clara e Bess de Porgy and Bess. Desta vez percebeu-se uma voz com notável vibrato, sons desiguais e uma emissão e projeção vocal nem sempre adequada e acertada. Nos duetos com Luiz-Ottavio notaram-se desigualdade de emissões vocais, com ganho ao baixo (Porgy) que aliás, cumpre uma carreira internacional em papéis de grande envergadura (Ranphis, Zaccaria, Sarastro, Mefistofeles, Sparafucille, Missa de Requiem (Verdi); Grande Inquisitor e Fellipe II (Don Carlo), Colline, Angelotti e Timur (Puccini), Alvise Badoero (La Gioconda) entre outros autores modernos e contemporâneos.  Escrito por Marco Antônio Seta em 27/9/2025. 

Comentários

Isabelly Trindad disse…
Considero que a crítica de Marco Antônio Seta é valiosa sua leitura demonstra compromisso com os elementos que fazem de Porgy and Bess uma obra singular, híbrida entre ópera, jazz, espiritualidade afro-americana, e que exige altos padrões de execução para que essas camadas todas apareçam com potência. É legítimo questionar como uma produção passa a tratar vozes, orquestra, coro etc., especialmente em produções líricas mais complexas.
Anônimo disse…
Bravo!
Plinio Jovem Ribeiro disse…
Bom dia Marco Antônio Seta
Arrasou os batráquios que distorcem a ópera.
Como sempre, impecável e imparcial. Desceu a lenha na enganação e louvou os artistas.
Também respondeu condignamente aos comentários elogiosos e aqueles feitos por quem não sabe de nada.
Como sempre, muito bom.