MACBETH DESFIGURADA: O DESCOMPROMISSO DA SUSTENIDOS COM A TRADIÇÃO LÍRICA DO THEATRO MUNICIPAL

RELEMBRANDO AS TEMPORADAS DE MACBETH 

Escrito por Marco Antônio Seta


Pelo histórico e centenário palco do Theatro Municipal de São Paulo, em setembro de 1976, Macbeth, de Giuseppe Verdi, ergueu-se pela primeira vez diante do público paulistano em uma produção de nobre envergadura artística. A Temporada Lírica Oficial daquele ano consagrou o título com sucesso retumbante de público e crítica especializada, marcando um capítulo memorável na história operística da cidade. Brilharam então o barítono Gian Piero Mastromei e o soprano Olivia Stapp nos papéis centrais, ladeados pelo tenor Beniamino Prior, o baixo Mario Rinaudo e a soprano paulista Helena Caggiano como a dama de Lady Macbeth, entre outros solistas convidados.

Tenor Beniamino Prior

A direção de cena foi conduzida por Lorenzo Frusca, com a orquestra sob o comando do maestro italiano Nino Bonavolontà e o Coral Lírico preparado por Marcello Mechetti. O Corpo de Baile do Theatro Municipal, em coreografia de Antonio Carlos Cardoso, completava a suntuosidade de um espetáculo de altíssimo nível. As três récitas nos dias 1º, 3 e 5 de setembro de 1976 apresentaram-se com a casa absolutamente lotada, em demonstração inequívoca do prestígio que a ópera de Verdi exercia sobre o público paulistano.

Em 1982, Macbeth retornaria com ainda maior vigor: oito récitas, dois elencos e um time expressivo de artistas da cena lírica internacional, entre os quais Antonio Boyer, Fernando Teixeira, Mabel Veleris, Giuseppina Dalle Molle e Graciela Araya Altamirano. A direção musical de Tullio Colacioppo e a cênica do italiano Walter Cataldi Tassoni reafirmavam o compromisso da instituição com a excelência artística e o respeito à tradição interpretativa verdiana.

O ciclo prosseguiu com a produção de 2002, que trouxe Juha Uusitalo, Gail Gilmore, Eduardo Itaboray, Luiz-Ottavio Faria e Sandra Felix sob a regência de Ira Levin e direção de Cristina Mutarelli mais uma vez, uma realização digna da grande casa lírica de São Paulo. Já em 2012, o título voltou em parceria internacional com a Change Performing Arts de Milão, em colaboração com a BG Promoções Culturais, resultando numa leitura cênica de Bob Wilson esteticamente ousada, inspirada no teatro japonês e no simbolismo do teatro grego, protagonizada por Angelo Vecchia e Anna Pirozzi.

Agora, em 2025, Macbeth volta ao Municipal sob a égide da Sustenidos Organização Social de Cultura e, infelizmente, sob o signo do descompromisso. A produção, dirigida cênica e cenograficamente por Elisa Ohtake, e musicalmente conduzida por Roberto Minczuk, promete mais uma vez repetir a fórmula das montagens recentes: um verniz de modernidade que despreza a coerência dramática e a força trágica da partitura de Verdi.

A Sustenidos, que há anos vem conduzindo o Theatro Municipal a um processo de descaracterização institucional, demonstra não compreender ou não respeitar o valor simbólico e histórico das obras que administra. O Macbeth que se anuncia parece menos um tributo ao gênio de Verdi e mais uma tentativa de enquadrar o clássico em moldes experimentais e conceituais, diluindo sua potência expressiva e o sentido político de sua tragédia.

Num teatro que já viu passar regentes como Bonavolontà, Colacioppo e Levin, e diretores cênicos de refinamento como Frusca e Tassoni, o que se espera é continuidade, reverência e qualidade. Contudo, sob a gestão da Sustenidos, prevalece a superficialidade travestida de inovação, o discurso cultural esvaziado de substância, e a ruptura gratuita com o legado que fez do Theatro Municipal uma referência internacional.

O público paulistano herdeiro de uma tradição lírica centenária merece mais do que montagens apressadas e experimentações estéticas de ocasião. Merece o Macbeth de Verdi em sua plenitude: trágico, denso, político, musicalmente rigoroso e fiel à grandeza do compositor e da casa que o abriga.

O que se aguarda, portanto, não é apenas a estreia de uma nova produção, mas a esperança de que o Theatro Municipal volte, um dia, a ser conduzido por quem compreenda a arte lírica como patrimônio e não como laboratório de vaidades culturais.

Comentários

Diva A. Meireles disse…
Nossa quanta verdade nesse artigo maravilhoso de Marco Antonio Seta. Temporadas que não retornam há anos. Não compareço mais ao teatro aqui em São Paulo. Vou em novembro assistir à "Madame Butterfly" no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. E a seguir à Milão na temporada do alla Scala de Milão assistir à tetralogia de Wagner, Pelléas et Mélisande, Turandot, Nabucco, Carmen e Lucia di Lammermoor entre outras óperas.
Maria Flores disse…
A crítica traduz exatamente o que muitos de nós sentimos: o Theatro Municipal parece ter perdido parte da sua alma. Não é sobre rejeitar o novo, e sim sobre preservar o cuidado e o respeito que a ópera merece. Dá pra sentir o amor pela arte em cada linha e também a dor de quem viu tempos mais comprometidos com a qualidade. Que bom ainda existirem vozes que falam com tanta verdade e paixão.
Miguel disse…
Achei a crítica muito verdadeira. Dá pra sentir a decepção de quem ama o teatro e vê as coisas mudando pra pior. Mesmo sem entender muito de ópera, entendo o que o autor quis dizer: falta cuidado, falta vontade de fazer algo com alma. Tomara que o Theatro volte a ter aquele brilho que tanta gente ainda espera ver.
Anônimo disse…
Parabéns
Jadson Mundim disse…
O que esperar de MACBETH?
Roberta Gelio Mancini disse…
Apenas uma boa cantora para a Lady Macbeth (Marigona Qerkezi) : o mais não merece confiança do público que paga para ver as ideologias dessa administração capenga.
Marco Antônio Seta disse…
Ações e políticas deletérias é o que se vai ver neste próximo Macbeth, de Giuseppe Verdi no Theatro Municipal.
Plínio disse…
Já li Marco.
Vc é um analista que escreve a partir da sua formação erudita, conhecimento histórico e trajetória consistente no mundo da música. Assim, suas críticas são embasadas, implacáveis e imparciais, dando o justo peso aos aspectos e pessoas criticados.
Não é pouca coisa meu primo.
Não por acaso, os comentários são praticamente unânimes em reconhecer isso.
Clarice Morozetti Blanco disse…
Hoje é o dia das bruxas e escolheram justamente esse dia para estrear a ópera Macbeth : vai dar bruxaria no palco e na plateia.
Anônimo disse…
Você está defendendo o que com isso? Que troquem de OS por uma alinhada ao governo que tenha como objetivo a precarizar ainda mais os corpos estáveis do theatro e menos voz crítica para os artistas? Não concordo com as montagens da sustenidos porque visam lucro, mas existem os muito piores! Quer compromisso com a arte o TM tem que sair das mãos das OSs, mas isso vc não critica!
Anônimo disse…
Crítica maravilhosa! Quero que o Theatro Municipal entregue o mesmo nível de qualidade de 2015, já estaria perfeito! Sem essa sanha lacradora da Sustenidos.
Carla Moretti disse…
Estou me lembrando da "Thaís", de Massenet produzida por Stefano Poda aqui em 2015. Que diferença descomunal com o lixo vivido por Macbeth, no mesmo palco do Teatro Municipal em 2025.