AS TEMPORADAS LÍRICAS NACIONAIS E O REAL TEATRO MUNICIPAL DO BRASIL ! Escrito por MARCO ANTONIO SETA.


No decurso das décadas já longínquas, bem como naquelas que marcaram o final do século XX e os primeiros anos do século XXI, o panorama lírico brasileiro conheceu momentos de inegável esplendor, quando temporadas de caráter eminentemente nacional eram promovidas com rigor artístico e administrativa competência, tanto no Theatro Municipal do Rio de Janeiro quanto no Theatro da Paz, em Belém do Pará; no Palácio das Artes, em Belo Horizonte; e, de forma igualmente memorável, no Theatro Municipal de São Paulo. Tratava-se de um período em que o “métier” era conduzido por administradores profundamente familiarizados com as complexidades da produção operística, capazes de reunir, em torno de um mesmo ideal estético, empresários do setor, maestros regentes, encenadores e intérpretes de sólida formação, todos comprometidos com a preservação e difusão dessa arte multifacetada que amalgama música, teatro, dança, indumentária, artes plásticas e técnica cênica.

No Rio de Janeiro, por exemplo, as temporadas líricas nacionais do Theatro Municipal constituíam verdadeiro acontecimento cultural. Basta recordar a memorável temporada de 1951, na qual foram apresentadas dez óperas com elencos exclusivamente brasileiros, a que se somou uma temporada internacional de magnitude excepcional, com mais dezesseis títulos protagonizados por luminares da lírica mundial. Desfilaram nesse palco vozes imortais como os dos sopranos e mezzo-sopranos Elisabetta Barbatto, Maria Callas, Diva Pieranti, Agnes Ayres, Renata Tebaldi, Fedora Barbieri, Maria Canalli, Maria Henriques, Elena Nicolai e Carmen Pimentel; os tenores Giuseppe Campora, Giuseppe Di Stefano, Beniamino Gigli, Mirto Picchi, Gianni Poggi, Assis Pacheco e Geraldo Chagas; os barítonos Eraldo de Marco, Paulo Fortes, Tito Gobbi, Peter Gottlieb, Enzo Mascherini, Paulo Silvieri e Silvio Vieira; e os baixos Boris Christoff, Giulio Neri, Giuseppe Modesti, Guillermo Damiano, Luiz Nascimento e Carlos Walter. Os maestros regentes foram os maiores da época: Edoardo de Guarnieri, Armando Belardi, Nino Stinco, Eleazar de Carvalho, Nino Gaioni, Nino Sansogno, Henrique Silvieri, Santiago Guerra, André Vivante e Antonino Votto. O resultado foi um repertório de 26 óperas encenadas em um único ano — número que, à luz das circunstâncias atuais, parece quase mítico.


Em contrapartida, São Paulo, com o seu Theatro Municipal, também cultivava temporadas líricas nacionais de elevado padrão artístico. Assim como no Rio, produções inteiramente brasileiras eram ali realizadas, desde o corpo vocal até os maestros regentes, diretores de cena, coreógrafos e cenógrafos. Sobressaíram nomes de coreógrafos como Iracity Cardoso, Marília Franco, Lia Marques e Jhony Franklyn, bem como bailarinos da estatura de Ady Addor, Aracy Evans, Mariangela D’Andrea, Toshie Kobayashi, Aracy de Almeida, Ivonice Satiê, Norma Mazella, Gil Saboya, Mozart Xavier, Michel Barbano, Klauss Vianna, Yellê Bitencourt e Eduardo Sucena. Figurinistas célebres como Clodovil Hernandez, Flavio Phebo e Dener Pamplona de Abreu concebiam trajes de deslumbrante inventividade para títulos como Aida, Tosca, La Traviata, Lakmé e Maria Tudor (Carlos Gomes), investindo-os de um glamour irrepetível na memória desse palco histórico.

O ano de 1964, em particular, legou ao público paulistano uma temporada inesquecível, com encenações de Andrea Chénier, Lucia di Lammermoor, La Traviata, Tosca, Madama Butterfly e Il Guarany. O cartaz desse período ostentava artistas como o soprano Ida Miccolis, tenores Sérgio Albertini e Benito Maresca, sopranos Vitoria Canale e Niza de Castro Tank, o contralto Mariangela Réa, os tenores Assis Pacheco e Zaccaria Marques, os barítonos Lourival Braga e  Garabet Ekizian e os baixos Alberto Medalon, José Perrotta e Newton Paiva. A direção de cena esteve a cargo de Mario de Bruno e Arnaldo Pescuma, enquanto a regência coube aos maestros Edoardo de Guarnieri e Armando Belardi — este último acumulando a função de diretor artístico da temporada. Outras edições memoráveis ocorreram em 1957, 1961, 1963, 1965 e 1967, as chamadas “Temporadas de Primavera”, realizadas invariavelmente entre setembro e novembro, época em que a cidade respirava ópera com a intensidade de um grande centro cultural europeu.

O advento do Projeto Pró-Ópera, instituído em 1981 sob a iniciativa do então Secretário Municipal de Cultura, Mário Chamie, representou um marco na valorização do artista nacional. Maestros e cantores ativos no cenário brasileiro foram convocados para integrar elencos de alto nível: Aldo Nilo Losso, Marta Baschi, Lenice Prioli, Niza de Castro Tank, Costanzo Mascitti, Andrea Ramus, Benedito Silva, Fernando Teixeira, Luiz Orefice, Wilson Carrara, Paulo Adonis, Berenice Pace, Renata Lucci, Sérgio Amorim, Ruth Staerke, Mariangela Réa, Zuinglio Faustini, José Dainese, Boris Farina e Helena Caggiano. A direção musical esteve nas mãos do maestro Tullio Colacioppo, cuja atuação como regente imprimiu um selo de rigor e refinamento interpretativo a essa fase, hoje lembrada como um dos últimos suspiros de real vitalidade da produção operística inteiramente brasileira




             
          Niza de Castro Tank,  intérprete de Cecília,  com Benedito Silva (Cacique) em "Il Guarany"

DE 26 ÓPERAS POR ANO A APENAS SETE: O RETRATO DA DECADÊNCIA LÍRICA SOB

A SUSTENIDOS ORGANIZAÇÃO SOCIAL DE CULTURA

Houve um tempo em que o Theatro Municipal de São Paulo rivalizava em dignidade e ambição artística com as grandes casas de ópera do mundo. Nas décadas de 1950 e 1960, chegava-se a encenar 20, 25 e até 26 títulos diferentes em uma única temporada, reunindo nomes lendários, produções de alto requinte e corpos artísticos estáveis, formados e valorizados no Brasil. Era uma era de ouro em que a palavra “temporada” significava continuidade, planejamento e excelência.

Hoje, sob a gestão da Sustenidos Organização Social de Cultura, essa grandiosidade se reduziu a uma pálida sombra. A chamada “temporada lírica” oferece apenas sete títulos — alguns sem qualquer apelo real ou relevância artística — e, em muitos casos, com produções simplificadas, concepções cênicas genéricas, óperas mutiladas, enxertadas e de cunho político de época, e  sobretudo com elencos que pouco dialogam com a tradição de excelência que marcou a história do Municipal.

Enquanto a Wiener Staatsoper, a Royal Opera House, em Londres, State Opera de Berlim, Hamburgo  ou Munichen,  e a Metropolitan Opera, de New York apresentam entre 25 e 35  títulos por ano, São Paulo assiste a um encolhimento humilhante, que não se explica apenas por crises econômicas. Trata-se de uma opção administrativa que ignora a vocação pública e formadora do teatro, desmonta a estrutura de produção própria e desvaloriza o artista brasileiro.

A decadência não é silenciosa — é evidente para qualquer espectador que conheça a trajetória da casa. Se nos anos 50, 60, 70 e após, entre 2013 a 2016 o público podia assistir, no mesmo ano, a Aida, Tosca, Lakmé, Maria Tudor, Andrea Chénier, Il Guarany, I Pescatori di Perle, Le Coq d'Or, Fidelio, Navio Fantasma, Tristão e Isolda e Lohengrin; Falstaff, Carmen, Simon Boccanegra, Manon Lescaut, Il Trovatore, Otello, Salvator Rosa, Fosca, Jupyra e Thaís, de Massenet e tantos outros títulos em montagens de gala, e com rigor, hoje se contenta com uma agenda rarefeita e artisticamente modesta.

Se não houver uma mudança urgente de rumos, a década de 2020 será lembrada como o período em que a gestão da Sustenidos transformou o maior palco lírico do país em um espaço subutilizado, sobrevivendo mais de memória do que de arte viva. E esse será um crime cultural imperdoável.

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