A ORQUESTRA EXPERIMENTAL DE REPERTÓRIO RESISTE, CRESCE E EMOCIONA — APESAR DAS MANHÃS, DA FALTA DE PROGRAMAS E DO DESCASO COM A MÚSICA BRASILEIRA
OS 35 ANOS DA OER E O DESAFIO MAHLERIANO: ENTRE A HISTÓRIA, O DESTINO E A PROGRAMAÇÃO FUTURA
No ano em que se comemoram os trinta e cinco anos de fundação da Orquestra Experimental de Repertório (1990–2025), foi realizado um concerto singular no Theatro Municipal de São Paulo — sua casa de origem — às 11 horas da manhã do domingo, 15 de junho de 2025. Retoma-se, assim, um símbolo de continuidade: foi nesse mesmo palco, há três décadas e meia, que o maestro Jamil Maluf apresentou o projeto ao Departamento de Teatros da Prefeitura, propondo a criação de uma orquestra composta por jovens músicos até 30 anos, que pudessem ingressar por meio de concurso público — com testes técnicos e rítmico-musicais — e atuar em caráter formativo, como um estágio para futuras vagas em orquestras profissionais.
Desde então, a OER tem sido espaço de formação, enfrentando fases de êxito artístico e momentos de instabilidade institucional. Após o período crítico mais recente, assumiu como maestro titular o regente Wagner Polistchuk, cuja atuação tem sido determinante para a revitalização e progresso do conjunto. O crescimento é visível: a OER volta a apresentar concertos com segurança técnica e direção expressiva, com notável coerência estética sob sua batuta firme.
Mas se a qualidade musical vem se consolidando, persistem questões institucionais e estratégicas a serem debatidas com urgência — a começar pela política de horários das apresentações. É absolutamente incongruente, para não dizer anacrônico, que um conjunto sinfônico de alto nível, vinculado a um teatro lírico de projeção internacional, mantenha-se restrito a apresentações dominicais às 11h da manhã, como se fosse um grupo amador de recreação comunitária.
A celebração dos 35 anos da OER exigia mais do que uma cerimônia em horário matinal. Por quê não programar concertos comemorativos em horários nobres, como sexta-feira às 20h ou sábado às 17h, com eventual repetição aos domingos à tarde? Por que privar o público que trabalha aos domingos de acesso a essas apresentações? Tais decisões não podem continuar submetidas a políticas administrativas rígidas e desprovidas de visão artística e de inserção cultural mais ampla.
A situação agrava-se quando se considera a falta de comunicação com o público. O concerto de 15 de junho iniciou-se com uma peça orquestral de um compositor brasileiro, cuja identidade sequer constava na flâmula pendurada à porta do Theatro Municipal. Sem programa impresso — prática abandonada pela atual gestão da Sustenidos Organização Social de Cultura —, e com a peça ausente também do livreto oficial de programação de maio e junho, a única informação disponível ao público foi a anunciada verbalmente pelo maestro. A ausência de documentos de sala impede o acesso a informações básicas e desprestigia a música nacional — mais um sinal de descompromisso institucional com a experiência formativa da audiência.
Seguiu-se, então, a monumental Sinfonia nº 5 em Dó sustenido menor, de Gustav Mahler, obra de 1902 que marca a transição do romantismo tardio para uma modernidade emocionalmente ambígua e esteticamente fragmentada. A instrumentação é massiva e exige grande aparato técnico: quatro flautas, três oboés, três clarinetes e clarone, três fagotes e contrafagote; seis trompas, quatro trompetes, três trombones e tuba; harpa, tímpanos, xilofone, bombo, pratos, triângulo, percussões diversas e um sólido naipe de cordas, com destaque para os oito contrabaixos — número digno das grandes orquestras sinfônicas internacionais.
O primeiro movimento, marcado por uma marcha fúnebre com o célebre "motivo do destino", foi iniciado pelo primeiro trompete com certa frieza, sem alcançar a tensão dramática esperada. Esse tema inicial, de clara inspiração beethoveniana, careceu do peso expressivo e da densidade atmosférica que a obra exige desde seus primeiros compassos. Um início hesitante, que comprometeu a imersão imediata do ouvinte.
O segundo movimento, concebido por Mahler como uma explosão de forças contrastantes, é uma fantasia tempestuosa sobre os temas da marcha. O maestro Wagner Polistchuk demonstrou aqui precisão e autoridade, conduzindo com expressivo detalhamento até a emergência do coral triunfante que prepara a apoteose do finale. Foi um dos momentos mais coesos da execução, com resposta firme da orquestra.No terceiro movimento, o Scherzo, destaca-se a atuação do trompista solista da OER, que entregou uma introdução límpida e expressiva, seguida por um engenhoso diálogo entre madeiras e metais — clarinetes, fagotes, oboé, flauta e trompete. Mahler desconstrói aqui a dança vienense com sarcasmo e intensidade rítmica, desafiando o convencional. A orquestra respondeu com desenvoltura, mesmo que por vezes desequilibrada nos planos dinâmicos.
O célebre Adagietto, para harpa e cordas, foi interpretado com elegância, embora tenha faltado um sopro de transcendência. É a peça mais conhecida da sinfonia — frequentemente retirada de seu contexto para uso em trilhas sonoras e adaptações melancólicas. A OER apresentou-o com correção, mas ainda sem alcançar a suspensão espiritual que este movimento é capaz de provocar quando executado com plena entrega lírica e flexibilidade tímbrica.
No Rondó-Finale, Mahler retoma o espírito lúdico e irônico, citando uma melodia da canção "Lob des hohen Verstandes", do ciclo Des Knaben Wunderhorn, em que um burro preside um concurso de canto — metáfora irônica sobre a crítica e o gosto. Esse humor sarcástico, embutido em intrincadas texturas contrapontísticas, foi bem absorvido pela OER, que encerrou a obra com energia coesa e um senso de construção formal que merece destaque. A regência de Wagner Polistchuk foi novamente determinante: um maestro concertatore de méritos superiores, cuja escuta inteligente e gesto claro conferem identidade e rigor à sonoridade do conjunto.
A escolha da Sinfonia nº 5 de Mahler para esse concerto comemorativo foi ousada — talvez até excessiva para uma orquestra ainda em desenvolvimento. A grandiosidade da obra impõe um esforço descomunal a jovens músicos e, se por um lado isso representa um desafio formador, por outro, revela o risco de que a complexidade ofusque a musicalidade.
Diante disso, seria desejável uma curadoria de repertório mais equilibrada e diversificada. Há obras igualmente ricas, desafiadoras e pedagogicamente produtivas, que poderiam figurar nas próximas temporadas da OER: a Sinfonia Fantástica, de Hector Berlioz; a Sinfonia nº 5 “Do Novo Mundo”, de Antonín Dvořák; a pouco ouvida mas belíssima Sinfonia em Ré menor, de César Franck; ou a Sinfonia Romântica nº 4, de Anton Bruckner, que permitiria explorar outros climas sonoros e arquiteturas expressivas.
Outras sugestões incluem as Danças Sinfônicas, de Sergei Rachmaninoff — obra de coloração rítmica e orquestral instigante —, o Requiem a Manzoni, de Giuseppe Verdi, com sua poderosa fusão de espiritualidade e drama, além da monumental suíte sinfônica de "Der Rosenkavalier", de Richard Strauss. E não se pode esquecer o vasto universo das seis sinfonias de Tchaikovsky, que oferecem à juventude orquestral um repertório emocionalmente intenso e tecnicamente variado.
Aos 35 anos, a Orquestra Experimental de Repertório mostra-se pronta para novos voos. Que esse amadurecimento artístico venha acompanhado de horários mais acessíveis - (sábados e domingos às 17h00); programações impressas dignas, diversidade estética e, sobretudo, um projeto institucional que não se limite à sobrevivência simbólica, mas se afirme como uma potência transformadora no cenário musical brasileiro.
Marco Antônio Seta, escreveu em 15 de junho de 2025, às l7 horas e vinte minutos.
Jornalista – MTB 61.909 - SP - FCL
Licenciado em Artes Visuais pela UNICASTELO, em São Paulo, e diplomado (Piano) pelo Conservatório "Dr. Carlos de Campos" (Tatuí-SP); formado também (Pedagogia) pelo Instituto de Educação "Peixoto Gomide", em Itapetininga-SP.
Comentários
Outra coisa sensata que ele aponta é sobre a comunicação. Cara, se você chega no Municipal e não sabe nem quem é o compositor nacional que foi apresentado, sem programa impresso, parece descaso. A galera sai de casa pra prestigiar música brasileira e nem tem o nome do autor na flâmula ou no livreto isso desvaloriza todo o esforço do concerto .Agora, no que ele elogia a qualidade técnica sob a batuta do Wagner Polistchuk também tô junto. A OER tem se mostrado segura musicalmente, e o repertório com Mahler é de respeito. Mas concordo que explorar outras obras desafiadoras, de Berlioz, Dvorak ou Bruckner, pode enriquecer ainda mais esse repertório
Enfim, torço pra que o aniversário de 35 anos seja um ponto de virada: metas ambiciosas em repertório, melhores horários e um tratamento mais cuidadoso com a experiência do público. A orquestra já mostrou que tem potencial só precisa ajustar esses detalhes pra voar ainda mais alto.