Britten foi evocado, mas a batalha foi contra o bom senso
No último fim de semana, o Theatro Municipal de São Paulo recebeu, enfim, a estreia local de uma das obras mais impactantes do século XX: o War Requiem, do compositor britânico Benjamin Britten (1913–1976). Escrita em 1961 para a consagração da nova Catedral de Coventry — reconstruída após a destruição nazista da original —, a obra articula um poderoso contraponto entre o rito sacro latino e os poemas devastadores de Wilfred Owen, soldado morto na Primeira Guerra Mundial. O resultado é um réquiem de dimensões humanas e metafísicas, uma súplica contra os horrores da guerra e um monumento sonoro à memória das vítimas. Mas nada disso parece ter sensibilizado o regente responsável por esta estreia paulista.
O maestro Roberto Minczuk, titular da Orquestra Sinfônica Municipal, protagonizou uma leitura tão insípida quanto estéril da partitura de Britten. Sua condução foi desprovida de tensão interna, de arcada formal e — mais grave — de qualquer entendimento poético do material. Onde Britten exige rigor e transcendência, Minczuk ofereceu literalismo. Onde há dor, ele trouxe frieza. Onde a música pede escuta e construção coletiva, ele impôs rigidez técnica e descompasso espiritual.
O resultado foi uma noite de ruídos bem-intencionados e intenções mal escutadas. A orquestra esteve aquém de seu potencial, operando no piloto automático. Os três coros envolvidos — Coral Paulistano, Coro Lírico Municipal e o Coro Infantojuvenil da Escola Municipal de Música — fizeram o possível para sustentar a estrutura vocal da obra, mas soaram frequentemente abandonados, sem amparo rítmico ou respiratório. O conjunto de câmara, essencial na alternância entre o íntimo e o grandioso, parecia desconectado do resto da engrenagem. Não houve coesão musical satisfatória.
Entre os solistas vocais, leia-se: o soprano Natalya Romaniw conseguiu imprimir alguma intensidade emocional, com um timbre pleno, quente e penetrante. Já o tenor Joshua Stewart foi um caso à parte: preciso, expressivo, e absolutamente consciente do papel simbólico que ocupa na partitura — sua interpretação foi, sem dúvida, o ponto alto da noite. Aliás, o teatro faria muito bem em convidá-lo para retornar à mesma casa em setembro próximo, na nova produção da ópera Porgy and Bess, de George Gershwin, para interpretar Sportin’ Life, personagem criado por Ira Gershwin e DuBose Heyward. Se é que, enfim, se pretende oferecer ao público um artista de reais qualidades vocais, musicais e cênicas para aquele papel tão marcante do repertório lírico afro-americano.
Em contraste gritante, o barítono Homero Velho soou completamente inadequado ao papel. Sua voz, de emissão opaca, carece de projeção claramente audível, o que comprometeu sua presença sonora em todos os momentos de destaque. Some-se a isso problemas técnicos recorrentes — ataque vocal impreciso, dificuldade na articulação e instabilidade de afinação — e uma total falta de entrega dramática ao que lhe cabe na partitura. O resultado foi uma performance apagada, desprovida de caráter e dramaticamente desidratada, que destoou nitidamente da qualidade de seus colegas solistas e minou boa parte dos duos com o tenor.
Mais do que uma leitura equivocada, esta estreia revelou um projeto problemático de curadoria artística. O War Requiem foi inserido na temporada do Municipal não por sua relevância estética, mas por sua utilidade institucional: trata-se de uma obra “de peso”, com conotação social e histórica, altamente “citável” em relatórios e discursos — e, portanto, perfeita para alimentar o marketing cultural de uma administração mais preocupada com imagem do que com profundidade.
Essa lógica parece pautar a atuação da Sustenidos Organização Social de Cultura, atual gestora do Theatro, que imprime à programação uma sequência de obras marcadas por discursos de guerra, dor, luto e resistência — não como forma de reflexão, mas como panfleto repetitivo. A escolha de Britten, portanto, diz menos sobre ele e mais sobre a política cultural em curso: uma arte instrumentalizada, cansada de si mesma, travestida de relevância.
Ao final da noite, ficou no ar o desconforto de ter assistido a um gesto vazio: uma partitura sublime sacrificada em nome da vaidade de um maestro que não soube (ou não quis) compreendê-la, e sim de agregar a obra ao curriculum do maestro em epígrafe; e inclusive, de uma instituição que se diz a serviço da arte, mas que parece cada vez mais comprometida apenas consigo mesma.
A música de Britten — lúcida, ética e comovente — merecia mais. Merecia menos Minczuk.
Escrito por Marco Antônio Seta, em 08/6/2025.
Marco Antônio Seta
Jornalista – MTB 61.909
Licenciado em Artes Visuais pela UNICASTELO e diplomado pelo Conservatório "Dr. Carlos de Campos" (Tatuí-SP); formado também pelo Instituto de Educação "Peixoto Gomide", em Itapetininga-SP.
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