O Assassinato de uma Obra-Prima - Escrito por Jadson Mundim

A montagem de Don Giovanni no Theatro Municipal é um exemplo explícito de como destruir a essência de um clássico em nome da irrelevância cênica

Acabo de sair da apresentação de Don Giovanni no Theatro Municipal de São Paulo, dirigida por Hugo Possolo, e confesso que poucas vezes na vida testemunhei tamanha violação de uma obra-prima. Não se trata aqui de conservadorismo ou de uma defesa cega da tradição – trata-se de respeito à arte, à inteligência do público e à complexidade de uma das composições mais sublimes da história da ópera. 

O que foi feito em cena não é releitura, não é atualização, não é provocação estética: é desmonte, é deturpação, é um vandalismo cultural travestido de modernidade.Possolo demonstrou, com cada inserção textual espúria, com cada piada mal colocada, com cada intervenção dramatúrgica forçada, uma arrogância autoral que beira a irresponsabilidade. É inacreditável que alguém, em sã consciência, tenha coragem de suprimir os recitativos originais de Da Ponte — escritos com precisão cirúrgica e em íntima simbiose com a partitura de Mozart — para inserir falas próprias, em português, recheadas de referências banais e pseudo-humorísticas, que mais constrangem do que comunicam. 

O resultado é uma perda total de densidade, de ritmo, de coesão estética. É como ver um palácio barroco ser recoberto com azulejos brancos de banheiro.A partitura de Don Giovanni é uma construção milimétrica: cada acorde, cada transição, cada sobreposição de vozes e de intenções dramáticas revela a genialidade de um compositor que soube equilibrar, como poucos, o sagrado e o profano, o trágico e o cômico, o desejo e o castigo. Mexer nisso exige não apenas ousadia – exige erudição, técnica e sobretudo humildade. Nada disso esteve presente nesta montagem; a pior de toda a história do Municipal de São Paulo. Musicalmente, a polirritmia do baile no final do primeiro ato, por exemplo — onde minueto (3/4), contradança (2/4) e dança camponesa (3/8) coexistem em sobreposição — deveria ser um dos pontos altos da ópera, um momento de tensão narrativa e engenhosidade musical. No entanto, ali, como em tantos outros momentos, a encenação dissonante e desarticulada impôs uma camada de ruído que impedia a fruição da complexidade sonora. A encenação parecia competir com a partitura, como se quisesse provar que o diretor tinha mais a dizer que Mozart. Um delírio.

E o que se fez com as personagens femininas é simplesmente indefensável. Donna Anna, Zerlina, Donna Elvira — mulheres que, cada uma à sua maneira, desafiam a dominação patriarcal de Don Giovanni e revelam camadas de sofrimento, força, desejo e contradição — foram reduzidas a figuras rasas, mal vestidas, caricaturais, desprovidas de densidade psicológica. Defender o original de Mozart só poderia dar em gritaria do público no teatro. Domingo ouvimos Hernan Iturralde (Giovanni) e Michel de Souza (Leporello); Savio Sperandio (Comentattore de Sevilha, Don Pedro) muito bem nesse papel; os quais não foram oouvidos no terceto final da ópera, mediante uma orquestra pesada e barulhenta nas mãos do pseudo-maestro Roberto Minczuk, cuja força e intensidade na regência põe a perder toda a beleza da composição de W. A. Mozart. Nos três papéis femininos a Donna Anna foi substituída, felizmente, por Ludmilla Bauerfeldt que assumiu no lugar de Provenzale, doente, numa interpretação de assim se anunciou) muito promissora em sua performance; L

O tratamento cênico dispensado a elas beira o machismo cênico, irônico e triste numa ópera que, em 1787, já oferecia protagonismo feminino com mais inteligência do que muitas obras atuais.A encenação fracassa também em compreender o que Don Giovanni representa: não é apenas a história de um libertino, mas uma meditação profunda sobre moralidade, liberdade, punição e desejo. 

É o confronto entre o hedonismo absoluto e a consequência implacável. Reduzir isso a um espetáculo cômico, recheado de trocadilhos e apelos ao riso fácil, é desonrar a filosofia que sustenta a obra.O que vimos foi um exercício de vaidade artística, que confundiu transgressão com banalidade, e inovação com vulgarização. E mais grave: tratou o público como se fosse incapaz de compreender o original, como se precisasse de adaptações simplistas para não se entediar. Isso não é democratizar a ópera, é subestimar o espectador.

A direção errou na concepção, errou na execução e errou na ética. Essa montagem é um desserviço, uma afronta ao repertório lírico e um alerta: não basta querer provocar, é preciso saber do que se está falando. E, sobretudo, é preciso respeitar a obra, o compositor, o librettista e o público.

Saio não apenas decepcionado, mas profundamente indignado. A ópera não precisa ser embalsamada em sua forma original, mas jamais pode ser dilacerada como foi aqui. Se essa é a direção para onde caminham nossas instituições culturais, que Deus nos livre de mais “atualizações” como essa.

Quero muito saber o que vocês acharam. Isso tudo é exagero da minha parte? Ou vocês também sentiram esse descompromisso gritante com a obra e com o público?

Comentários