DO RISO DE STRAUSS À FUGA DO PÚBLICO

Uma crítica ao desequilíbrio artístico e à má administração da experiência auditiva

A apresentação realizada no Theatro Municipal de São Paulo no domingo, 18 de maio de 2025, sob o pretensioso título “Ouvir as cores (100 anos de física quântica)”, é o retrato cristalino da decadência conceitual e curatorial que infesta parte significativa da produção musical dita “contemporânea”. O uso leviano de temas complexos e mal compreendidos como a física quântica — neste caso tratado como mero adorno para um título sensacionalista — beira a fraude intelectual. Estamos diante de mais um exemplo da apropriação de jargões científicos e culturais com o único intuito de gerar curiosidade rasa em um público que, infelizmente, é alvo fácil de estratégias de marketing pseudocultas.

A tentativa de vincular as "cores do som" ao centenário da física quântica é, no mínimo, uma artimanha publicitária pobre, desprovida de embasamento teórico-musical minimamente consistente. Fala-se em “Ano Internacional da Ciência e Tecnologia Quântica” como se isso por si só justificasse o amálgama forçado entre arte e ciência — sem o menor esforço de explicar, desenvolver ou musicalmente traduzir tais ideias. O que se viu, na prática, foi uma programação desequilibrada, mal planejada e, em última instância, desrespeitosa para com o público pagante.

A peça “Concerto para quarteto de percussão e orquestra ”, de Clarice Assad, embora conte com arranjos orquestrais minimamente competentes, revela-se um exercício de obviedades folclóricas requentadas. A inserção de cantigas de roda em um contexto de percussão solista pode parecer, à primeira vista, uma proposta instigante, mas logo se mostra um recurso fácil, repetitivo e superficial. A estrutura da composição não avança; repousa em uma zona de conforto harmônico e rítmico que jamais se transforma. A interação entre os naipes da orquestra é previsível, sem risco ou ousadia formal. O destaque dado ao grupo Martelo, por mais enérgico que tenha sido, transforma o palco num espetáculo circense de percussão, onde a complexidade do pensamento musical cede lugar à teatralização da técnica e ao aplauso fácil.

Em seguida, sem qualquer intervalo — uma decisão imperdoável e injustificável — fomos atirados à monumental “Assim falava Zarathustra” de Richard Strauss, obra sinfônica densa, filosófica, e extremamente exigente tanto para a orquestra quanto para o ouvinte. Executar tal obra em sequência direta, sem oferecer ao público tempo para respirar, reflete não só uma falta de sensibilidade artística, mas também uma ignorância crassa sobre os fundamentos da programação sinfônica. Tratar o ouvinte como um recipiente inerte a ser preenchido ininterruptamente revela um desrespeito grotesco.

A execução de Strauss, apesar da nobreza da partitura, foi prejudicada pela escolha amadora de colocá-la no centro de um programa já inflado. O maestro Leonardo Labrada demonstrou empenho, mas ficou aquém do necessário para sustentar o peso interpretativo da obra (tímbales, a desejar); — seja por falta de pulso nos clímax, seja por falhas no equilíbrio orquestral (flautas e harpas). O discurso ao microfone — deslocado, pouco claro e fora de hora — apenas corroborou a impressão de improviso e desorganização. Quanto à auto-promoção,  deselegante e desnecessária. 

A cereja do bolo (estragado) foi o anúncio da obra “Crase” de Flo Menezes. Já com a plateia exaurida, desidratada e emocionalmente drenada, seria um absurdo exigir atenção a uma peça de linguagem dodecafônica ou eletroacústica (como é frequente no autor), cujo conteúdo exige concentração e energia. A permanência dessa peça na programação demonstra um erro crasso de curadoria e de respeito ao limite físico do público. Eu, assim como muitos, retirei-me antes da execução, incapaz de sustentar a avalanche de exaustão imposta.

A Sustenidos Organização Social de Cultura fracassou em sua responsabilidade básica: oferecer ao público uma experiência musical equilibrada, coerente e respeitosa. A ausência de um intervalo, a falta de contextualização sólida dos conceitos, a programação disfuncional e o excesso de “maquiagem intelectual” tornam o evento um exemplo do que NÃO se deve fazer em curadoria musical.

A arte não precisa se esconder atrás de modismos pseudocientíficos para ser relevante. E o público — mesmo jovem e inexperiente — merece ser tratado com inteligência e seriedade. Esse tipo de espetáculo apenas reforça o abismo entre a verdadeira música erudita e as aberrações curadoriais que tentam travestir ruído de profundidade.


Escrito por Marco Antônio Seta, em 20/5/2025.

Marco Antônio Seta
Jornalista – MTB 61.909
Licenciado em Artes Visuais pela UNICASTELO e diplomado pelo Conservatório "Dr. Carlos de Campos" (Tatuí-SP); formado também pelo Instituto de Educação "Peixoto Gomide", em Itapetininga-SP.

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