As temporadas líricas no Theatro Municipal: 1970 foi memorável e histórica

 

1970: O ANO EM QUE O THEATRO MUNICIPAL DE SÃO PAULO RESPIRAVA GRANDEZA E CELEBRIDADES

Escrito por Marco Antônio Seta


                   Ruggero Bondino é Pinkerton e o soprano lírico Mietta Sighele como Madama Butterfly (Cio-Cio-San)

Da consagração de Niza de Castro Tank à inesquecível Tosca de Elena Souliotis, um contraste doloroso com a mediocridade imposta pela Sustenidos Org. Social de Cultura

Em 1970, o Theatro Municipal de São Paulo viveu uma temporada lírica que permanece como um dos pontos mais altos de sua história. À frente, o empresário Alfredo Gagliotti, que com visão e compromisso artístico articulava o co-patrocínio da Prefeitura e trazia elencos internacionais de peso, em diálogo com artistas nacionais. Nada de improvisos, nada de burocracia cega — havia critério, paixão e respeito pelo público. Hoje, sob a gestão da Sustenidos Organização Social de Cultura, o cenário é outro: temporadas raquíticas, escolhas sem brilho, ausência de ousadia e o esvaziamento da própria alma do Municipal.

O ano foi aberto, com pleno sentido histórico, pela ópera Il Guarany, de Carlos Gomes, celebrando o centenário de sua estreia em Milão. O elenco vinha direto das récitas do San Carlo de Nápoles e do Massimo de Palermo, sob regência de Armando Belardi e direção de Bruno Nofri. Nomes como Sérgio Albertini, Wilson Carrara, Benedito Silva e Niza de Castro Tank deram vida à obra, em cenários e figurinos vindos da Itália, de Roma, com a marca da cenografia Parravicini. O público lotou a sala em 9 e 11 de setembro, celebrando um espetáculo digno do centenário de estreia da ópera no alla Scala de Milão. Após tantas produções desta ópera em São Paulo, esta foi talvez, a maior e mais original que se viu no palco do Municipal. Difícil imaginar, hoje, a Sustenidos com capacidade de pensar e montar algo dessa envergadura. É só lembrarmos do Guarani lacrado, marchetado, mutilado, enxertado e deturpado,  apresentado em 2023 e repetido em 2025. 

Logo em seguida, nos dias 16 e 18 de setembro, o Municipal recebeu Madame Butterfly, de Puccini, com Mietta Sighele e Ruggero Bondino, em montagem de beleza delicada, lindos figurinos e cenários, com ballet tipicamente japonês "Keiko Wakamatsu" e com a Orquestra Sinfônica Municipal e o Coral Lírico. Dias depois, em 23 e 25 de setembro, a Lucia di Lammermoor transformou-se em noite apoteótica: Niza de Castro Tank foi ovacionada como nunca, numa performance dramática e  coloratura impecável,  arrancando aplausos que se prolongaram muito além do cair do pano. Ao lado dela, o tenor lírico italiano Ruggero Bondino, Constanzo Mascitti e Mario Rinaudo completavam um elenco afinado, sob regência de Alberto Paoletti. Era a consagração do talento brasileiro em diálogo com o melhor do mundo.


                        Aos  09 e 11/ de Setembro /1970 no Theatro Municipal de São Paulo  ouviram-se             Niza de Castro Tank, Sergio Albertini, Wilson Carrara e Benedito Silva em Il Guarany, de Carlos Gomes sob a direção musical de Armando Belardi e Bruno Nofri (regisseur). 

Em outubro, a temporada atingiu seu auge. Aída (6 e 9/10) trouxe a monumentalidade de Rita Orlandi Malaspina, Bruno Prevedi, Marta Rose,  Gian Giacomo Guelfi, Massimiliano Malaspina, Mario Rinaudo e do soprano paulista Renata Lucci, numa montagem reforçada pela Banda da Polícia Militar do Estado de São Paulo e pelo Corpo de Baile do Teatro Municipal. O gigantismo cênico e sonoro da obra de Verdi encontrou palco à altura com o Coral Lírico e a Orquestra Sinfônica Municipal. Regência do italiano Mtrº concertatore Alberto Paoletti. 

Mas foi em 14 e 16 de outubro que o Municipal explodiu em glória com uma Tosca histórica. Elena Suliotis, nos figurinos criados especialmente por Dener Pamplona de Abreu, incendiou o palco ao lado de Gianfranco Cecchele e de um Giangiacomo Guelfi (barítono dramático), 



Elena Souliotis
         
 que encarnou, talvez, o maior Barão Scarpia já visto em São Paulo. Ao órgão de tubos Tamborini, Ângelo Camim;  Canarinhos Liceanos do Coração de Jesus, Coral Lírico Municipal e Orquestra Sinfônica Municipal. Nino Bonavolontá regeu com autoridade e competência musical. O triunfo foi absoluto, com plateia de pé, emocionada e arrebatada.

Fechando o ciclo, em 21, 23 e 25  de outubro, Carmen, de Bizet, com o timbre arrebatador de Marta Rose, regida por Nino Bonavolontá e dirigida por Frank de Quell, coroou a temporada com vitalidade e energia. O Coro Infantil Canarinhos Liceanos, o Coral Lírico e a Orquestra Sinfônica Municipal completaram um espetáculo memorável. No cast: Sergio Albertini, Marta  Baschi e Gian Giacomo Guelfi entre outros cantores nacionais. 

                                                               Marta Rose mezzo soprano (Chile) a imponente e majestosa  Princesa Amneris (Aida) somada a um timbre dramático e arrebatador na Carmen, na inflamada Santuzza da "Cavalleria Rusticana" , além da ciumenta Princesa de Boillon (Adriana Lecouvreur ) ou de Venus (Tannhauser), de Wagner. Representou também a Laura, de La Gioconda, junto ao elenco do Teatro de San Carlo di Napoli, em 1969 no Theatro Municipal de São Paulo, ao lado de Elena Souliotis, Giangiacomo Guelfi, Carlo Cava, Délia Lago  e Gianni Raimondi. Maestro concertatore UGO RAPALO.


Essa sucessão de obras-primas, executadas com critério, talento e respeito, é a medida exata do que São Paulo já viveu. Em contraste, a temporada sob a Sustenidos Organização Social de Cultura é pobre, sem brilho, sem ambição, e destoa da grandeza que outrora fez do Municipal referência cultural da América Latina.

A temporada lírica oficial de 1970 não foi apenas um calendário de récitas: foi um acontecimento artístico e cívico. Um marco de excelência, de orgulho e de memória coletiva. Hoje, lembrar esses dias de glória é também denunciar a mediocridade atual — e exigir que o Theatro Municipal volte a ser o templo da ópera, e não uma sombra administrada por quem não entende, não ama e não respeita a arte lírica.


Comentários

Jadson Mundim disse…
O relato sobre a temporada lírica de 1970 evidencia como critérios de seleção, planejamento e execução são determinantes para a grandiosidade de uma casa de ópera. A articulação entre artistas nacionais e internacionais, o cuidado com cenários, figurinos e regência, além do respeito à tradição musical e à expectativa do público, criaram uma experiência estética completa e memorável. Essa temporada demonstra que excelência não se mede apenas pela quantidade de obras apresentadas, mas pela coerência, qualidade e densidade artística de cada produção.
Comparar esse período com a gestão atual da Sustenidos Organização Social de Cultura revela um contraste dramático: a ausência de planejamento estratégico, a escolha de repertório sem peso histórico ou cultural e a falta de investimento em produções de alto nível enfraquecem o prestígio do Theatro Municipal. A memória da temporada de 1970 serve como parâmetro crítico, mostrando que é possível alinhar rigor técnico, ousadia artística e envolvimento do público, mantendo a relevância cultural e a legitimidade de uma instituição centenária.
Jadson Mundim disse…
Além da excelência artística e da curadoria criteriosa, a temporada de 1970 evidencia como a gestão cultural integrada é essencial para transformar uma programação em experiência cívica e educativa. O cuidado com a formação de plateia, a valorização do talento nacional em diálogo com artistas internacionais e a atenção a cada detalhe de produção desde cenários e figurinos até regência e preparação coral criaram um modelo de temporada que transcende o mero entretenimento, consolidando memória coletiva e identidade cultural.
Essa perspectiva evidencia o impacto direto da gestão na percepção pública e na longevidade da instituição. O contraste com as práticas atuais demonstra que improviso e escolhas desconectadas do patrimônio histórico não apenas reduzem a qualidade artística, mas também comprometem a função social do Theatro Municipal, afastando público e diminuindo sua relevância cultural. A leitura histórica de temporadas memoráveis, como a de 1970, não é nostalgia, mas uma referência crítica para orientar decisões futuras e resgatar o Municipal como referência de excelência internacional.
Anônimo disse…
A lembrança da temporada de 1970 mostra como o Municipal já foi exemplo de planejamento e excelência artística. Mais do que nostalgia, esse resgate é um convite a repensar o presente e cobrar que a gestão atual trate o teatro com o mesmo cuidado, respeito e ambição que marcaram aquele período histórico.
Anônimo disse…
Cheguei até este texto por acaso e, mesmo não sendo conhecedor de ópera, fiquei impressionado com a riqueza de detalhes sobre a temporada de 1970. Deu para perceber a importância que o Theatro Municipal já teve e como cada produção era pensada com muito cuidado. Ler esse relato despertou em mim a vontade de conhecer mais sobre esse universo e também a curiosidade de ver o Municipal voltar a viver momentos de tanta grandiosidade.
Rubens Gianotti Pimentel disse…
Não dá mais vontade de ir ao Municipal. Cada dia, diminuo as minhas idas a esse teatro. É o medo de ir e ver as lacrações, os mutilamentos e os desvios que os diretores cênicos e maestro titular e diretor artístico da OSM, Roberto Minczuk, costumam realizar, de surpresa, ao público pagante do Theatro Municipal de São Paulo.
Lamentavelmente eu digo a todos os leitores deste Blog. O público conhecedor das óperas líricas e dramáticas, bem como as cômicas-bufas, barrocas e ou históricas; se distanciam do Theatro Municipal por todos esse motivos supra mencionados.
Anônimo disse…
Laura Jafet Castronuovo: Lembro-me desta temporada e também da temporada de 1969. Teatro San Carlo de Nápoles com Mario Del Monaco no papel de Otello. Foi uma das últimas vezes que ele cantou essa ópera. Uma maravilha ao lado de tantos artistas gigantes !
Foi de verdade uma temporada inesquecível...Nabuco e OTELLO, de Verdi e finalmente Lá Gioconda, de Ponchielli. Artistas gigantes nunca mais visto iguais ! Gian Giacomo Guelfi, Carlo Cava, Pier Miranda Ferraro, Luisa Maragliano, Mário Del Mônaco, Ilva Ligabue, Anselmo Colzani, Elena Souliotis, Marta Rose, Delia Lago, Mário Rinaudo, Gianni Raimondi com Oliviero de Fabritis e Ugo Rapallo. Um luxo memorável... ! Nunca mais igual...
Ana Maria Del Claro disse: escrevo que estou atômita em ver no que se transformou o nosso maior teatro em São Paulo. Confesso que não mais irei às óperas da atual administração que lá está atuando (Organização Sustenidos Social de Cultura; mas que cultura é essa ? Devíam se levantar, enquanto público e começar a gritar : o que é isso aqui ? o que fizeram com Carlos Gomes, Verdi, Mozart ? Destruidores da ópera e do clássico consagrado pelo mundo afora ! Paralisar a apresentação e não deixar continuar !
Rubens Giannotti Pimentel disse: Realmente é assustador estas escolhas atuais, repetidamente erradas !
Marco Antônio Seta escreve: É uma tristeza ver o nosso Theatro Municipal a que ponto chegou. Agora vamos ter um "Porgy and Bess" , segundo a diretora cênica do espetáculo, transpondo o ambiente original para o nosso cotidiano nas comunidades de nossa capital ou mesmo de outras cidades brasileiras. Já mudou o âmbito onde se passa em Catfish Row, em Charleston, na Carolina do Sul, em 1925/1930. Quais são os objetivos sócio-culturais desta diretora que nunca encenou uma ópera em lugar algum ? E agora vem com esssa proposta inadequada ao distinto público de São Paulo ! Pobre público que paga o seu ingresso, enganado que iria assistir ao grande Georg Gershwin original, e não é nada disso. Vai se degladiar com uma época e âmbito totalmente antagônico ao que DuBose Heyward e Ira Gershwin criaram para a humanidade se deleitar com esta obra prima de Gerog Gershwin.