A TEMPORADA 2026 DA ORQUESTRA SINFÔNICA MUNICIPAL: UM REPERTÓRIO SEM NORTE
O simulacro da novidade e o esvaziamento do patrimônio
O concerto inaugural, intitulado “Floresta Brasileira”, traz Priscila Bomfim à regência e Hércules Gomes ao piano, com um repertório que reúne Da Terra, da paraense Cibelle Donza; uma obra do alagoano Hekel Tavares; Alegres Trópicos: um baile na mata atlântica, de Gilberto Mendes; e, por fim, o inevitável Choros nº 10, Rasga o Coração, de Heitor Villa-Lobos, interpretado pelo Coro Lírico Municipal sob a direção de Hernán Sánchez Arteaga.
A retórica da novidade aqui é falaciosa. O eixo da noite é sustentado pelo Choros nº 10, obra que já foi exaustivamente interpretada no Theatro Municipal de São Paulo, em diferentes décadas, sob a direção de maestros de relevo como Edoardo de Guarnieri, Eleazar de Carvalho, Isaac Karabtchevsky, John Neschling, Roberto Tibiriçá, Sílvio Barbato, Santiago Guerra, Mario Tavares, Henrique Morelembaun e David Machado. A peça, longe de representar ousadia, cumpre a função de elemento estabilizador em meio a um programa composto por obras marginais e pouco significativas no repertório nacional.
Ou seja: o concerto inaugural não traz de fato um gesto inovador, mas sim um simulacro de novidade, sustentado pelo retorno à tradição villalobiana.
A fragmentação programática e o vazio educativo
Na sequência da temporada, observa-se a multiplicação de programas que privilegiam compositores de escassa circulação: An-Lun Huang (Dança de Saibei), Kaija Saariaho (Nymphéa Reflection), Olga Neuwirth (Dreydl), Hannah Kendal (He Stretches out the North…), George Lewis (Your Network is Unstable), Caroline Shaw (In the swallow) e um concerto inteiramente dedicado ao compositor e regente chinês Tan Dun.
Essas escolhas não configuram gesto educativo, pois não aproximam o público do patrimônio musical universal, tampouco criam vínculos de memória ou identidade cultural. O resultado é uma programação hermética, desinteressante e elitista ao avesso: em lugar de valorizar a tradição sinfônica, exibe um catálogo de nomes pouco relevantes, cuja inserção no Municipal parece mais motivada por políticas de legitimação internacional e cosmopolitismo artificial do que por qualquer projeto pedagógico consistente.
Pergunta-se: qual a razão de destinar espaço privilegiado a tais compositores em uma orquestra pública paulistana, sustentada com recursos do erário?
O repertório vilipendiado e ignorado: o peso da tradição
O contraste se torna gritante quando se recorda a vastidão de obras que permanecem esquecidas nos arquivos do Theatro Municipal: as sinfonias de Brahms e - "Um Requiem Alemão "- as obras de Glazunov, Rachmaninoff, as sinfonias, aberturas e o Requiem, de Hector Berlioz, as partituras de Mendelssohn-Bartholdy, Schumann; os concertos e poemas sinfônicos de Franz Liszt. A obra tcheca de Smetana e Antonin Dvorak (1841-1904), o lirismo nórdico de Edvard Grieg, os russos Borodin, Tchaikovsky, Rachmaninoff e Stravinsky, os concertos para piano de Chopin, César Franck, Saint-Saëns, Claude Debussy, Maurice Ravel, Anton Bruckner, além dos barrocos e clássicos românticos Handel, Cherubini, Corelli, Haydn, Gluck, Vivaldi, Mozart, Beethoven, depois Glinka, Glière, Chabrier, Charpentier, sem esquecer Antonio Carlos Gomes, Manuel de Falla, Albéniz, Ginastera, Samuel Barber e Bela Bartók; Aaron Copland e a monumental obra de Arthur Honegger ("O Rei David " e suas quatro sinfonias).
Esse repertório, que moldou a identidade das maiores orquestras do mundo, forma o alicerce pedagógico, estético e histórico da tradição sinfônica. Ignorá-lo em favor de nomes de circulação reduzida não é ousadia, mas negligência.
Sala de espectáculos esvaziada pela programação
O gigantismo enganador de Mahler e a Sinfonia nº 8
A insistência na continuidade do ciclo das dez sinfonias de Gustav Mahler poderia, em tese, oferecer densidade à temporada. Deixadas de lado as de nº 4, 5, 6, 7 e 9 ainda não apresentadas, no entanto, a opção de incluir a Sinfonia nº 8, a “Sinfonia dos Mil”, ao lado de When the World as You’ve Known It Doesn’t Exist, de Ellen Reid, revela mais um gesto de gigantismo enganador do que de responsabilidade cultural.
A Sinfonia nº 8, monumental em suas proporções e em seu aparato cênico, tem sido recorrentemente utilizada por orquestras no mundo todo como espetáculo de efeito, destinado a criar a ilusão de grandiosidade. Trata-se de um recurso espetacularizante: o público é seduzido pela escala da obra, mas sai do concerto sem a necessária continuidade formativa que apenas a convivência com o repertório canônico poderia oferecer.
Função social da orquestra e desarticulação institucional
Uma orquestra municipal deve ter, em primeiro lugar, compromisso com três funções centrais: preservar a tradição, formar plateia e ousar com equilíbrio. Nenhuma dessas três dimensões é plenamente contemplada pela temporada anunciada.
Em termos de recepção estética, a programação falha por não considerar a experiência histórica do público paulistano com o cânone sinfônico. Em termos de função social, falha por não educar nem popularizar. E, em termos de gestão cultural, falha por se converter em vitrine de modismos passageiros e interesses individuais de regentes convidados.
A temporada 2026 não é, portanto, apenas irregular. Ela é um sintoma de desarticulação institucional, uma prova de que o Municipal se distancia de sua função de guardião do patrimônio musical para assumir o papel de laboratório de legitimidades externas.
A programação apresentada pela Orquestra Sinfônica Municipal de São Paulo não é coerente, nem educativa, nem popular. É desinteressante, fragmentária e ilusória. Ao priorizar compositores desconhecidos e irrelevantes no cânone, ao negligenciar o patrimônio sinfônico universal e ao recorrer ao gigantismo da Sinfonia dos Mil como recurso enganador, o Theatro Municipal trai sua própria missão cultural.
A pergunta que resta não é “o que se toca”, mas “o que se deixa de tocar – e por quê”
legitimidade cultural e memória coletiva, para dar peso universitário à crítica?
Comentários
Ignorar pilares fundamentais do repertório Brahms, Berlioz, Rachmaninoff, Mendelssohn, Bruckner, entre tantos outros em favor de nomes periféricos, sem vínculo com a memória musical coletiva, não representa ousadia, mas um afastamento da missão pedagógica e social do Municipal. Obras canônicas não são apenas patrimônio estético: são referência formativa para músicos e público, e constituem o alicerce de legitimidade de qualquer orquestra que se pretenda relevante.
A insistência em recorrer ao gigantismo espetacularizante da Sinfonia nº 8 de Mahler, em vez de consolidar a continuidade do ciclo de suas sinfonias de modo pedagógico, evidencia ainda mais a estratégia de efeito imediato em detrimento da construção cultural de longo prazo. Uma temporada que se distancia da memória coletiva e da tradição sinfônica acaba, inevitavelmente, esvaziando sua legitimidade cultural.
Se o Municipal deseja manter sua relevância, precisa resgatar o equilíbrio entre inovação responsável e respeito ao cânone, sem o qual qualquer projeto educativo e artístico se torna inconsistente.