A Morte Simbólica do Theatro Municipal de São Paulo: Crônica de um Desmonte Anunciado - Escrito por Marco Antônio Seta

A Morte Simbólica do Theatro Municipal de São Paulo: Crônica de um Desmonte Anunciado 


O Theatro Municipal de São Paulo, outrora bastião da cultura erudita latino-americana e palco inconteste das maiores expressões da música clássica e da lírica mundial, encontra-se hoje à mercê de uma política cultural que banaliza sua missão fundacional. A atual gestão conduzida pela Sustenidos Organização Social de Cultura, longe de preservar os parâmetros técnico-artísticos exigidos por uma instituição centenária, prefere priorizar ações de apelo superficial e pedagógico questionável — como "teatro de portas abertas", "visitas temáticas", "dobras, picotes e desdobramentos", mãos na massa" ou "ateliê aberto" — à curadoria de qualidade que resguarde a integridade do repertório operístico e sinfônico ali executado.

Basta lembrar os grandes nomes que, ao longo do século XX e início do XXI, consagraram o palco paulistano com interpretações memoráveis. No universo pianístico, desfilaram por suas temporadas artistas do quilate de Claudio Arrau, Alicia de Larrocha, Magda Tagliaferro, Antonietta Rudge, Guiomar Novaes, Jacques Klein, Antonio Guedes Barbosa, Nelson Freire, Arnaldo Cohen, Arthur Moreira Lima, Cristina Ortiz e Roberto Szidon — intérpretes de notória relevância internacional, que elevaram o nível estético do Municipal a patamares comparáveis aos grandes centros culturais europeus.

Basta voltarmos o olhar para as décadas passadas — desde os já distantes anos de 1950 ou mesmo de antes — para recordar os tempos áureos deste palco histórico, que recebeu alguns dos maiores nomes da lírica mundial. Por aqui passaram tenores como Enrico Caruso, Beniamino Gigli, Ferruccio Tagliavini, Tito Schipa, Galliano Masini, Mario Del Monaco, Giuseppe Di Stefano, Mario Filippeschi, Cesare Valetti, Gianni Poggi, Pier Miranda Ferraro, Gianni Raimondi, Bruno Prevedi, Gianfranco Cecchele e Nicola Martinucci; barítonos como Titta Ruffo, Leonard Warren, Tito Gobbi, Gino Bechi e Gian Giacomo Guelfi; e baixos como Nicola Rossi-Lemeni, Giulio Neri e Italo Tajo.

Entre os sopranos e mezzo-sopranos que abrilhantaram este palco, destacam-se Claudia Muzio, Rosa Raisa, Amelita Galli-Curci, Maria Barrientos, Gilda Dalla Rizza, Bidu Sayão, Maria Caniglia, Rina De Ferrari, Fedora Barbieri, Nina Giani, Gabriella Besanzoni Lage, Marta Rose, Solange Petit-Renaux, Zinka Milanov, Ebe Stignani, Toshiko Hasegawa, Elisabetta Barbato, Maria Callas e Renata Tebaldi.

                           Marta Rose (Fedra)                                                                    Mietta Sighele (Cio-Cio-San)

O mesmo se diga das figuras lendárias da ópera: Carlo Bergonzi, José Carreras, Montserrat Caballé, Gianni Raimondi, Virginia Zeani, Marta Rose, Bruno Prevedi, Elena Souliotis, Ruggero Bondino, Mietta Sighele, Ileana Cotrubas, Giuseppe Giacomini, Carlo Colombara, Maria Guleghina, Mirella Freni, Ivo Vinco, Fiorenza Cossotto, , Renata Scotto, Ghena Dimitrova, Bruna Baglioni, Antonietta Stella, Giuseppe Taddei, Rita Orlandi Malaspina, Massimiliano Malaspina, Mario Rinaudo, Carlo Del Bosco, Elena Nicolai, Maria Luisa Nave, Mara Zampieri, Nino Meneghetti, Mabel Veleris, Francisco Ortiz, Alicia Nafé, Graziela Araya Altamirano, Kathleen Casselo, Lucia Mazzaria, Giancarlo Ceccarini, Giusy Devinu, Roberto Aronica, June Anderson, Frank Lopardo, Aprile Millo e Corneliu Murgu. Cada um desses nomes representa uma era de excelência que transcende modismos e confirma o papel do Theatro Municipal como centro de formação do gosto, da técnica e da tradição musical.


                                                                                                                                  Entrada de Madame Butterfly, de Puccini

Diante deste histórico irrefutável, é inconcebível que a atual administração lance mão de gravações mecânicas para substituir execuções ao vivo, como ocorreu em produções de "Nabucco", ou na próxima < Macbeth (Verdi), onde os alunos da Escola Municipal de Música, outrora convocados a integrar o espetáculo operístico, foram substituídos por faixas pré-gravadas. Trata-se de uma decisão não apenas tecnicamente infeliz, mas eticamente reprovável, pois lesa o público — que paga para assistir a uma performance artística legítima — e desprestigia o compositor, cuja obra deve ser vivificada na experiência sonora in loco.

As montagens cênicas seguem a mesma lógica de degradação. Aida, dirigida por Bia Lessa, foi um exdrúxulo devaneio cenográfico, mutilado musicalmente e enxertado cenicamente, que sufocou a potência dramatúrgica da partitura; O Guarani, sob a batuta ideológica de Ailton Krenak e Cibele Forjaz,  cuja direção musical de Roberto Minczuk, foi destituído de sua dimensão musical e dramatúrgica, reduzido a manifesto político. Nabucco, pelas mãos de Christiane Jatahy, tornou-se um teatro de colagem desconexo e hermético, distante do gesto musical verdiano. Finalmente, Don Giovanni, dirigido por Hugo Possolo, foi a culminância da indigência cênica, convertendo um dos maiores monumentos da dramaturgia mozartiana em um espetáculo burlesco, raso e desprovido de sentido trágico. Em todas essas encenações, o elemento musical — que deveria ser o centro gravitacional da ópera — é relegado à condição de fundo sonoro, acessório ilustrativo de concepções estéticas vazias.

  Cena de Il Guarany (Gomes) com Savio Sperandio (Cacique no Ato III)                        Ilustração de Mozart e L.Da Ponte 

Don Giovanni, longe de ser apenas um retrato de um libertino, é uma profunda meditação sobre liberdade, moralidade, desejo e punição — e já em 1787 oferecia protagonismo feminino com mais agudeza do que muitas óperas contemporâneas. Destroçar essa obra em nome de uma suposta irreverência cênica não é ousadia: é ignorância. É falta de erudição, ausência de técnica e sobretudo carência de humildade diante do gênio."

A polirritmia do baile ao final do primeiro ato — combinação engenhosa de minueto (3/4), contradança (2/4) e dança camponesa (3/8) — foi tratada com descaso, soterrada por ações cênicas incoerentes e dispersivas.

O desastre não se restringe à direção cênica: no campo musical, a regência de Roberto Minczuk evidencia um déficit técnico alarmante. A exclusão de instrumentos essenciais como órgão e segunda harpa, prescritos explicitamente por Giuseppe Verdi, compromete a arquitetura sonora e o simbolismo dramático da obra. Minczuk, que deveria assegurar a coesão estilística e o rigor da leitura, entrega interpretações desarticuladas, erráticas, e por vezes francamente equivocadas, tanto no que se refere ao andamento quanto à dinâmica e à articulação orquestral.

A gestão da Sustenidos, ao priorizar atividades lúdico-formativas e visitas escolares — ainda que revestidas de vocabulário sofisticado —, erra ao suprimir o âmago do Municipal: ser um centro irradiador de excelência artística. As propostas de “linha, forma e cor”, “repertório das mãos” ou “mãos na massa”, ainda que simpáticas como propostas didáticas periféricas, jamais podem substituir o compromisso com a tradição musical de alta complexidade técnica e simbólica. A substituição da excelência pela mediocridade travestida de inovação é, nesse contexto, não apenas um equívoco administrativo, mas um atentado ao patrimônio cultural da cidade de São Paulo.

O Theatro Municipal pertence ao povo paulistano. Ele é sustentado por sua memória coletiva, pela contribuição financeira dos cidadãos e pelo direito inalienável que a população tem de acessar produções artísticas de qualidade. Transformá-lo em laboratório de experimentações escolares ou panfletárias é uma traição à sua história. Se é verdade que novos públicos devem ser conquistados, também é verdade que isso se faz com inteligência curatorial, com formação musical qualificada e com a oferta de espetáculos que elevem o espírito — não com uma pedagogia populista que, sob o pretexto de democratização, acaba por empobrecer e banalizar.

Urge uma refundação estética, ética e administrativa do Theatro Municipal de São Paulo. Esta refundação só será possível se reconectarmos o presente à grandeza do passado, honrando os nomes que por ali passaram e exigindo, das futuras gestões, o mesmo grau de seriedade, rigor técnico e respeito pela arte. O Municipal não pode ser o túmulo de sua própria história — ele precisa, urgentemente, voltar a ser o seu eco mais vivo.

Comentários

Celso Pessoa disse…
O Theatro Municipal sempre foi, pra mim, um símbolo de excelência artística um espaço onde a arte erudita encontrava seu lugar mais alto. Ver agora esse histórico sendo substituído por ações que, apesar de bem-intencionadas, soam rasas e desconectadas da missão original do teatro, é desolador.
Não sou contra inovação nem contra atrair novos públicos muito pelo contrário. Mas existe uma linha tênue entre abrir as portas e esvaziar o conteúdo. Quando se troca uma orquestra ao vivo por uma gravação, quando se desmonta a profundidade de uma obra como Don Giovanni pra fazer uma encenação caricata, o que estamos realmente comunicando? Que tradição e excelência não importam mais?
Izilda disse…
Só nos faltava essa destruição neste país falido com esse governo petista!
Infelizmente é isso mesmo. Existe uma linha tênue entre abrir as portas do teatro e esvaziar o conteúdo e a qualidade técnica e artística da programação e, inclusive dos artistas envolvidos nos eventos musicais.
Sheila Bittencourt de Moraes disse: o espelho da história memorável da programação do Teatro Municipal de São Paulo demonstra a qualidade e a alta capacidade administrativa e artistica daqueles que alí atuaram por décadas de ouro.
Lourdes disse…
Olá boa tarde, perfeito seu artigo, Parabéns.
É um descaso,com tudo o que se relaciona com educação e cultura verdadeira ,nesse país.
E poucos são os que se encomodam com o que acontece,acham tudo normal.
Teatro Municipal faz parte da história da cidade de São Paulo é marco histórico de nossa cultura, nosso cartão postal.
Me recordo de quando era costume enviar cartões para os amigos,a alegria de quem nem conhecia São Paulo receber um postal com a foto do teatro.
Construção requintada ,chic lembrando os teatros da Europa.
Hoje nada é valorizado ,uma pena para os jovens de hoje e para as futuras gerações. E para nós que vivenciamos esses anos dourados uma doce recordação em nossas memórias e em nossos corações.
Ronaldo Leoni disse…
Infelizmente, a crítica está certa. O Theatro Municipal, A falta de programação relevante e o abandono institucional transformaram um espaço histórico em mero cenário. É triste ver um patrimônio cultural tão importante perder sua força simbólica.
Anônimo disse…
Oi Marco.
Suas críticas mantêm o alto nível com o qual me acostumei.
Contexto histórico, avaliações técnicas sempre fundamentadas, a diversidade dos aspectos dos espetáculos - tudo que vc aborda tem sólido embasamento e agrada os leigos, como eu, e aqueles com conhecimento mais profundo, que se manifestaram favoravelmente e demonstraram apoio nos comentários.
A única coisa que tenho a dizer é: continue assim, siga seu caminho, manifeste seu espírito crítico e não dê moleza para os detratores da arte.
Abração, meu primo querido.
Ana Maria disse…
Parabéns Seta ! Vc escreve maravilhosamente bem e reporta com muita clareza os fatos. Um verdadeiro repórter além dos seus principais atributos de músico e pianista. 👏👏👏👏✨✨✨✨😘😘
Anônimo disse…
Não é preciso ser especialista em ópera, balé ou música sinfônica para perceber que algo está profundamente errado. O Theatro, que já foi símbolo de prestígio cultural e ponto de encontro da elite artística brasileira, hoje se encontra à deriva. A crítica expõe a troca da excelência pela mediocridade, a perda de identidade artística e a falta de compromisso com o público e com os próprios artistas.
O mais chocante é ver que as denúncias vêm sendo feitas de dentro por quem vive e conhece a cena cultural por dentro. Quando um artista e educador como Seta levanta a voz, não é por vaidade ou disputa pessoal, mas por amor à arte e ao patrimônio público.
A crítica que ele faz não é gratuita: ela é fundamentada em fatos, exemplos e sobretudo em um sentimento coletivo de frustração. O Theatro Municipal deixou de ser espaço de criação e virou vitrine de vaidades políticas, palco de amadorismo administrativo e terreno fértil para a desconstrução do que restava da cultura erudita paulistana.
É hora de escutar essas vozes. Não só por respeito à história do Theatro, mas porque o povo paulistano merece um teatro digno, vivo, pulsante não um fantasma institucional de sua antiga glória.