A ópera-ballet em dois atos Le Villi (As Fadas), atualmente apresentada no Theatro Municipal de São Paulo, marca o retorno à primeira obra lírica de Giacomo Puccini (1858–1924), cuja estreia ocorreu em 31 de maio de 1884 no Teatro Dal Verme, em Milão, com libreto de Ferdinando Fontana. A obra, marcada por lirismo sombrio e elementos sobrenaturais, já antecipa traços que viriam a amadurecer em composições posteriores, como Manon Lescaut.
ESCRITO POR MARCO ANTÔNIO SETA
Nesta produção conjunta com Friedenstag (Dia de Paz) de Richard Strauss (1864–1949), os cenários assinados por Bia Junqueira tomaram um rumo mais simbólico, porém pouco eficaz no contexto de Le Villi. Ao abdicar da ambientação original — a primavera na Floresta Negra — a cenografia enfraqueceu a atmosfera romântica e trágica da obra, essencial para a imersão do público no mundo fantástico das fadas vingativas. O contraste com Friedenstag, onde os elementos visuais foram mais harmônicos com a dramaturgia, tornou-se evidente.
Já os figurinos criados por Laura Fronçozo apresentaram sensibilidade e fidelidade às exigências dramáticas, sobretudo em Friedenstag, onde os trajes revelaram solidez estética e função narrativa. Em Le Villi, no entanto, o figurino do personagem Roberto destoou por sua inadequação e mau gosto visual, comprometendo a construção cênica e a leitura simbólica do papel.
Na parte musical, a direção da maestra Priscila Bomfim mostrou-se sólida, com gestual preciso e leitura respeitosa das intenções de Puccini e Strauss. A Orquestra Sinfônica Municipal respondeu com boa articulação, nuances bem exploradas e coesão interna. O Coro Lírico Municipal, preparado por Hernán Sánchez Arteaga, foi um dos pontos altos da noite: bem ensaiado e equilibrado em suas vozes, destacou-se especialmente nos sopranos I e II, que deram brilho e lirismo às passagens corais de ambas as óperas.
No elenco, Gabriella Pace (Anna) ofereceu uma interpretação musical sensível, com legatos bem desenhados e ornamentações expressivas. Entretanto, sua emissão nas regiões médias e graves revelou uma sonoridade velada e opaca, e os agudos, por vezes ásperos e instáveis, comprometeram sua fluência nos clímax vocais. O tenor Eric Herrero (Roberto), hoje diretor artístico do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, apresentou um personagem introspectivo e marcado pela culpa. Sua atuação foi correta, embora vocalmente discreta. Rodrigo Esteves (Guglielmo), por sua vez, mostrou desempenho satisfatório, mas seus agudos, curtos e abruptos, indicam certo declínio em sua extensão vocal. Cênica e musicalmente, as atuações se mantiveram em um plano convencional.
No plano técnico, a iluminação concebida por Gonzalo Córdoba foi responsável por momentos de verdadeiro êxtase visual, com feixes e recortes de luz que intensificaram o drama e ampliaram o impacto emocional de cenas-chave. Esses efeitos foram elegantemente coadjuvados pelo trabalho refinado de Madonna no visagismo e na perucaria, completando o quadro estético com equilíbrio e atenção ao detalhe.
Apesar de certas fragilidades — especialmente em Le Villi, na articulação entre cenografia e dramaturgia — a montagem representa um esforço artístico meritório, tanto por resgatar obras pouco encenadas quanto por promover a colaboração de um time técnico-artístico comprometido. Em tempos de instabilidade institucional e cultural, manter vivo o repertório lírico com esse nível de entrega já é, por si, um ato de resistência e celebração da arte.
A densa, moderna e espetacular orquestração de Richard Strauss encontrou na condução da maestra Priscila Bomfim uma intérprete à altura de seus desafios. Sua direção musical foi não apenas categórica e marcante, mas também sensível ao equilíbrio dinâmico entre a grandiosidade da partitura e a necessidade de preservar vozes menores — algumas delas, ocasionalmente, com características vocais aquém das exigências dramáticas e técnicas impostas pelos papéis.
Ambientada em uma fortaleza no sul da Alemanha, ao fim da Guerra dos Trinta Anos — conflito entre os protestantes e as forças imperiais católicas — Friedenstag (Dia de Paz) é uma ópera de fortes tensões ideológicas e emocionais. Sua dramaturgia contrapõe o fanatismo militar ao desejo pela reconciliação e pela humanidade. Essa temática encontra eco poderoso na encenação inédita da obra na América Latina, apresentada pela primeira vez em São Paulo, cuja realização se impôs como um feito artístico de grande fôlego.
Os dois personagens centrais, o Comandante da cidade sitiada e sua esposa Maria, foram interpretados respectivamente por Leonardo Neiva e Eiko Senda. Leonardo Neiva entregou uma performance vocal segura e bem projetada, compondo seu personagem com convicção e sobriedade, revelando um barítono lírico de boa emissão e controle expressivo adequado ao papel. Dentro de suas possibilidades vocais e dramáticas, construiu um comandante interiorizado e em constante conflito.
Já Eiko Senda ofereceu uma atuação vocal de forte impacto emocional. Dono de um instrumento poderoso, seu soprano lírico spinto foi utilizado com intensidade e intuição dramática, conferindo ao papel de Maria uma aura redentora e profundamente humana. Em momentos cruciais, sua voz brilhou com raios luminosos de emissão clara, aliando técnica apurada a uma entrega emocional tocante. Com formação sólida e escola de canto que preza pela tradição lírica, Eiko alcançou nuances interpretativas que evocaram tanto a força pacificadora da personagem quanto a sua resiliência interior.
O percurso artístico da soprano, atualmente centrado em grandes papéis dramáticos do repertório, como Tosca e Turandot (Puccini), Ariadne e Arabella (Strauss), Lady Macbeth e Abigaille (Verdi), Fidelio (Beethoven), entre outros, reafirma sua maturidade vocal e versatilidade expressiva. Sua Maria, em Friedenstag, se junta a essas figuras emblemáticas como mais uma encarnação artística de força e transcendência.
A música de Strauss, aqui representada em toda sua complexidade e exuberância, é a mesma que brilha nos monumentais poemas sinfônicos como Assim Falava Zaratustra, e nas intensas óperas Salomé, Electra, Der Rosenkavalier, Ariadne auf Naxos, A Mulher sem Sombra, Intermezzo, Helena do Egito, Arabella, Die Schweigsame Frau, Daphne, Die Liebe der Danae, Capriccio e nas sublimes Vier letzte Lieder (As Quatro Últimas Canções). Compositor de inventividade ininterrupta e vocação teatral inigualável, Strauss teve sua escrita orquestral aqui valorizada com maestria.
Importa assinalar, a propósito da qualidade musical alcançada, que apenas um verdadeiro maestro concertatore é capaz de extrair de seus intérpretes — sejam músicos instrumentistas, sejam cantores líricos — o máximo rendimento expressivo. Nesse sentido, a maestra Priscila Bomfim reafirmou sua estatura artística como regente de mérito comprovado, à frente de importantes orquestras brasileiras e estrangeiras. Sob sua batuta, a Orquestra Sinfônica Municipal alcançou belas sonoridades e uma leitura precisa, densa e dramaticamente coerente da partitura straussiana, cujos desafios técnicos e estilísticos não são triviais.
O elenco de Friedenstag, obra que estreou em Munique em 24 de julho de 1938, contou com um conjunto de intérpretes que, em sua maioria, entregaram atuações convincentes, sustentando a força coral e a complexidade dramática da montagem. Eric Herrero (tenor) deu voz ao Piemontês com elegância e clareza de emissão. Sérgio Righini apresentou o Holsteiner com um timbre velado, mas adequado à gravidade do personagem. Já Saulo Javan (Sargento), com sua voz nasalada e vibrato excessivo — fruto de desgaste vocal típico de baixo buffo — teve um rendimento abaixo do ideal.
Por outro lado, destacaram-se positivamente Santiago Villalba, barítono de projeção sonora eficaz no papel do Oficial; Jessé Vieira, em desempenho seguro como oficial da linha de frente; os tenores Geilson Santos (outro soldado) e Miguel Geraldi (Prefeito), ambos corretos em suas intervenções; Márcio Marangon, barítono que emprestou firmeza ao papel do Cabo; Raphael Thomas (baixo, Corneteiro), Daniel Lee (barítono, Mosqueteiro) e Leonardo Pace (baixo, Bispo), todos com caracterizações adequadas e musicalmente bem integradas ao conjunto. Mencionável também a participação de Adriana Magalhães, 1º soprano do Coro Lírico Municipal, que interpretou a Mulher do Povo com timbre expressivo e acento emocional preciso, trazendo humanização à cena coletiva.
A história da ópera se entrelaça à biografia de seus criadores: Friedenstag foi dedicada por Strauss ao regente Clemens Krauss e o soprano dramático Viorica Ursuleac — sua esposa e primeira intérprete de Maria na estreia berlinense de 1939, sob regência do próprio Krauss. Na ocasião, o elenco contou com nomes de peso como Ursuleac, Prohaska, Bockelmann e Gino Sinimberghi. Agora, o Theatro Municipal de São Paulo oferece ao público o privilégio de conhecer esta obra monumental, raramente encenada, com récitas iniciadas no sábado, 19 de julho de 2025, às 17h, em pleno inverno paulistano.
Trata-se de uma oportunidade rara e valiosa, que rompe com o predomínio do repertório tradicional italiano e francês, e amplia o horizonte cultural do público brasileiro. A programação em double bill, reunindo Le Villi e Friedenstag, terá novas récitas nos dias 20 (às 17h), 22, 23 e 25 (às 20h), e nos dias 26 e 27 (às 17h), consolidando uma temporada marcada pela ousadia artística e pela diversidade estilística.
Comentários
Concordo com a crítica do Seta: a cenografia simbólica de Bia Junqueira rende menos em Le Villi a abdicação da primavera na Floresta Negra atenua a atmosfera romântico-trágica essencial mas funciona com muito mais pertinência em Friedenstag, onde volumes, texturas e eixos construídos no palco dialogam com a geometria militar e a progressão dramática rumo à paz. A luz de Gonzalo Córdova (que percebi quase como planta luminotécnica em camadas) marca estados emocionais e amplia profundidade; os figurinos de Laura Françozo cumprem função narrativa clara, embora alguns desvios de caracterização em Le Villi
Musicalmente, Priscila Bomfim organiza com precisão a heterogeneidade estilística do programa e doma a orquestração densa de Strauss sem soterrar as vozes ponto que a crítica destaca e que considero central num título raramente ouvido aqui. O Coro Lírico preparado por Hernán Sánchez Arteaga oferece suporte robusto; entre os solistas, a Maria de Eiko Senda impacta pelo arco emocional, enquanto Leonardo Neiva constrói um Comandante contido porém firme; elenco de apoio irregular mas eficaz nas massas. Esses resultados lembram o quanto Friedenstag exige equilíbrio concertante entre aparato orquestral e dramaturgia coral.
Também concordo com o contraste feito com Le Villi. A montagem acabou parecendo um pouco fria mesmo, e talvez tenha faltado à direção um olhar mais apaixonado pela narrativa da obra. Por outro lado, senti falta de uma análise mais detalhada do desempenho da soprano Gabriella Pace, que, apesar de discreta, teve momentos de entrega muito dignos.
No geral, seu texto nos convida a olhar para esse “double bill” com mais profundidade e respeito. Obrigado por dar espaço a esse tipo de repertório e por compartilhar sua leitura com tanto cuidado.